Entrou em vigor a lei que eleva a 40 anos a pena para o crime de feminicídio — o assassinato de mulheres em contexto de violência doméstica ou de gênero. Publicada no Diário Oficial da União nesta quinta-feira (10), a Lei 14.994, de 2024 foi sancionada sem vetos pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Com isso, a pena para os condenados pelo crime de feminicídio passa a ser de 20 a 40 anos de prisão, maior do que a incidente sobre o de homicídio qualificado (12 a 30 anos de reclusão).
Conhecida como “Pacote Antifeminicídio”, a lei também aumenta as penas para outros crimes, se cometidos em contexto de violência contra a mulher, incluindo lesão corporal e injúria, calúnia e difamação.
A lei partiu do Projeto de Lei (PL) 4.266/2023, da senadora Margareth Buzetti (PSD-MT), que foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em novembro do ano passado. A proposta, que teve relatório favorável do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), seguiu direto para a Câmara, de onde foi remetida à sanção presidencial. “O homem decreta [a pena de morte] e executa a mulher”, disse Buzetti, ao defender o endurecimento da lei. Já Alessandro Vieira observou que, com o texto, o feminicídio passaria a ter a maior pena privativa de liberdade da legislação brasileira.
Legislação alterada
A norma altera o Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 1940), a Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688, de 1941), a Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 1984), a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072, de 1990) e a Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006). A nova lei torna o feminicídio um crime autônomo e estabelece outras medidas para prevenir e coibir a violência contra a mulher.
Pela legislação anterior, o feminicídio era definido como um crime no âmbito do homicídio qualificado. Já a nova lei torna o feminicídio um tipo penal independente, com pena maior. Isso torna desnecessário qualificá-lo para aplicar penas mais rigorosas. Assim, a pena passa de 12 a 30 anos para de 20 a 40 anos de reclusão.
Agravantes
A Lei 14.994, de 2024, sancionada na quarta, também estabelece circunstâncias agravantes para o crime de feminicídio, nas quais a pena será aumentada de um terço até a metade. São elas: quando o feminicídio é cometido durante a gestação, nos três meses posteriores ao parto ou se a vítima é mãe ou responsável por criança; quando é contra menor de 14 anos, ou maior de 60 anos, ou mulher com deficiência ou doença degenerativa; quando é cometido na presença de pais ou dos filhos da vítima;
quando é cometido em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha e e no caso de emprego de veneno, tortura, emboscada ou arma de uso restrito contra a vítima.
Outros crimes contra a mulher
A nova norma também aumenta as penas para os casos de lesão corporal contra a mulher, para os crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação), para o crime de ameaça e para o de descumprimento de medidas protetivas. Nas saídas temporárias — os chamados “saidões” — da prisão, o condenado por crime contra a mulher deve usar tornozeleira eletrônica. Ele também perde o direito a visitas conjugais.
Perda de poder familiar
De acordo com nova lei, após proclamada a sentença, o agressor perde o poder familiar, da tutela ou da curatela.
Também são vedadas a nomeação, a designação ou a diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito julgado da condenação e o efetivo cumprimento da pena.
Progressão da pena
Pela lei, o condenado por esse tipo de crime só poderá ter direito a progressão de regime após, no mínimo, 55% da pena. Atualmente, o percentual é de 50%.
O texto prevê ainda tramitação prioritária e isenção de custas, taxas ou despesas em processos que apuram crimes contra a mulher e determina a transferência do preso para um presídio distante do local de residência da vítima, caso ele ameace ou pratique novas violências contra a vítima ou seus familiares durante o cumprimento da pena.
Agressões e mortes
Segundo o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1.467 mulheres morreram vítimas de feminicídio em 2023 — o maior registro desde a sanção da lei que tipifica o crime, em 2015. As agressões decorrentes de violência doméstica tiveram aumento de 9,8%, e totalizaram 258.941 casos.
Razões Estruturais e Históricas do Feminicídio: A Importância da Análise Patriarcal na Relação Homem-Mulher
O feminicídio, entendido como o assassinato de mulheres em função de seu gênero, é um problema profundamente enraizado nas estruturas sociais e históricas de desigualdade. Para entender suas causas e combater de maneira eficaz, é crucial analisar o fenômeno sob a perspectiva patriarcal, que molda a relação entre homens e mulheres há séculos. A seguir, são apresentadas as razões estruturais e históricas que contribuem para o feminicídio e a importância de desconstruir o sistema patriarcal para reduzir os elevados índices de violência contra a mulher.
Patriarcalismo e Subordinação Histórica das Mulheres
Historicamente, as sociedades têm sido estruturadas sob a lógica do patriarcado, um sistema social em que o homem é o centro do poder político, econômico e social. Nesse sistema, a mulher é vista como inferior e subjugada às vontades e controle masculino. Essa subordinação é sustentada por crenças e práticas culturais que normalizam o controle sobre os corpos e as vidas das mulheres, perpetuando o ciclo de violência.
Desde a antiguidade, mulheres foram associadas ao espaço doméstico, ao cuidado da família e à dependência econômica dos homens. O controle sobre as mulheres, especialmente dentro de contextos familiares, criou um terreno fértil para a violência de gênero, incluindo o feminicídio. Sob essa lógica, o feminicídio é, muitas vezes, uma consequência extrema de um sistema que legitima o poder do homem sobre a vida da mulher, especialmente quando ela tenta romper com esse controle — seja através do divórcio, da denúncia de abusos ou da recusa a submissão.
A Cultura do Machismo e Misoginia
O machismo, que sustenta a ideia de que homens são superiores às mulheres, é uma expressão direta do patriarcado. Ele se manifesta de diversas formas — desde atitudes cotidianas de menosprezo e discriminação até formas extremas de violência, como o feminicídio. A misoginia, o ódio ou desprezo pelas mulheres, também é um componente estrutural que alimenta a violência de gênero. Essas atitudes criam um ambiente de impunidade, onde muitos homens se sentem justificados em exercer poder e controle sobre as mulheres, inclusive por meio da violência física e psicológica.
A normalização de comportamentos machistas nas famílias, nas escolas e no trabalho contribui para a perpetuação dessa violência. O feminicídio, portanto, não é um crime isolado, mas o ponto culminante de uma trajetória de desvalorização da vida e da integridade da mulher.
Desigualdade de Gênero e Dependência Econômica
Outro fator estrutural que contribui para o feminicídio é a desigualdade econômica e social entre homens e mulheres. Historicamente, as mulheres foram mantidas em uma posição de dependência econômica dos homens, o que as impede de deixar relacionamentos abusivos ou de buscar ajuda contra agressores. Essa desigualdade se reflete também no mercado de trabalho, onde as mulheres, em muitos casos, recebem salários mais baixos e têm menos acesso a posições de poder.
Essa vulnerabilidade econômica coloca muitas mulheres em situações de risco, especialmente em relações em que o controle financeiro é uma forma de manipulação e poder. O feminicídio, nesse contexto, muitas vezes surge como o desfecho de uma relação em que a mulher não tem os recursos para se libertar da violência doméstica.
Violência Doméstica como Precedente do Feminicídio
A violência doméstica é um dos principais precursores do feminicídio. Estudos mostram que muitos feminicídios são o resultado de anos de violência física, emocional e psicológica que ocorrem dentro do ambiente familiar. O ciclo de violência doméstica é alimentado por uma combinação de fatores, incluindo a normalização da agressão, a dependência emocional e financeira, e a falta de apoio institucional para as mulheres.
Sem a intervenção adequada, a violência doméstica pode escalar até o feminicídio. Nesse sentido, o feminicídio é uma manifestação extrema de um problema estrutural que começa muito antes da agressão fatal, com agressões físicas menores, controle coercitivo, e uma cultura de impunidade.
Impunidade e Falhas no Sistema de Justiça
A impunidade é um dos grandes desafios no combate ao feminicídio. Durante séculos, os crimes contra mulheres foram tratados com leveza ou sequer reconhecidos como crimes graves. A falta de punição efetiva para agressores cria um ambiente em que a violência é tolerada ou ignorada, permitindo que casos de violência doméstica evoluam para feminicídios. Além disso, falhas no sistema de proteção, como a falta de medidas preventivas eficazes ou a ineficiência na aplicação de medidas protetivas, também contribuem para a reincidência de violência.
Mesmo com leis como a Lei Maria da Penha e, mais recentemente, a Lei 14.994 de 2024, o Brasil ainda enfrenta desafios no cumprimento rigoroso das normas e na proteção efetiva das vítimas. A aplicação inadequada da lei e a falta de treinamento de agentes do sistema de justiça muitas vezes deixam mulheres vulneráveis, mesmo após denunciarem situações de risco.
Importância da Desconstrução Patriarcal
Para acabar com os elevados índices de feminicídio, é essencial desconstruir a lógica patriarcal que perpetua a desigualdade entre homens e mulheres. Isso requer uma transformação cultural profunda, que comece na educação e se reflita em todos os setores da sociedade. A educação para a igualdade de gênero, o combate ao machismo, e a promoção de um ambiente de respeito e valorização da mulher são fundamentais para evitar que novas gerações reproduzam o ciclo de violência.
A desconstrução do patriarcado também envolve fortalecer as políticas públicas de apoio à mulher, com maior acesso a serviços de proteção, abrigos, assistência jurídica e psicológica. Além disso, é crucial que o sistema de justiça seja eficiente e ágil na aplicação das leis, garantindo que agressores sejam punidos e que as mulheres recebam a proteção devida.
A Transformação Social e o Papel dos Homens
Por fim, a luta contra o feminicídio não pode ser realizada apenas pelas mulheres. Os homens também têm um papel essencial na desconstrução do patriarcado e na promoção de uma sociedade mais igualitária. Ao questionarem os privilégios que lhes foram conferidos pelo sistema patriarcal e se comprometerem com a igualdade de gênero, os homens podem ser agentes ativos na mudança cultural necessária para reduzir o feminicídio e a violência contra a mulher.
Conclusão
O feminicídio no Brasil é uma manifestação extrema de um problema estrutural e histórico de desigualdade de gênero, profundamente enraizado na lógica patriarcal que rege as relações entre homens e mulheres. A sanção da Lei 14.994, de 2024, que eleva a pena para o crime de feminicídio e endurece as punições para outros crimes cometidos em contexto de violência contra a mulher, é um avanço crucial no combate a essa violência, sinalizando um compromisso mais rigoroso por parte do Estado.
No entanto, a simples mudança nas penas legais não é suficiente para eliminar o feminicídio. É necessário compreender as razões históricas e estruturais que sustentam essa violência, como o patriarcado, o machismo, a misoginia e a dependência econômica das mulheres. Essas forças criaram uma cultura de subordinação feminina e impunidade masculina, que deve ser desconstruída por meio de políticas públicas eficazes, uma justiça mais ágil e protetiva, e, acima de tudo, uma transformação cultural profunda.
A desconstrução do patriarcado exige esforços conjuntos e contínuos. A educação para a igualdade de gênero, o combate ao machismo, o fortalecimento das redes de proteção à mulher e a conscientização dos homens sobre seu papel nesse processo são fundamentais para reduzir os índices alarmantes de feminicídio. Somente com a articulação entre medidas legislativas, ações preventivas e mudanças socioculturais será possível construir uma sociedade em que as mulheres possam viver livres da violência, com dignidade e segurança.
Dessa forma, a nova legislação representa não apenas uma resposta mais dura aos crimes de feminicídio, mas também um marco na luta por justiça de gênero, contribuindo para a construção de uma sociedade mais igualitária e justa, onde a vida e os direitos das mulheres sejam plenamente respeitados.